Mais do que um fenômeno local, a candidatura do empresário Pablo Marçal à prefeitura de São Paulo é a manifestação, no Brasil, de uma tendência que vem mostrando aos políticos tradicionais a necessidade de repensar a forma e o conteúdo das campanhas eleitorais. Marçal age como se estivesse na ágora grega. Ele considera os partidos políticos uma formalidade legal e dispensa intermediários em seu contato com o eleitor. Ele escuta o que o povo pensa, divulga suas opiniões e assume os compromissos do que pretende realizar. É a democracia direta, em seu estado mais puro.
O modelo utilizado por Marçal consiste na combinação dessa prática ancestral, ou seja, a da democracia direta, com aquilo que há de mais moderno em matéria do uso das tecnologias digitais. Esses recursos estão ao alcance de qualquer candidato. O que varia é a eficiência do uso que se faz deles. E embora Marçal se dirija ao eleitor da capital paulista, seu discurso atrai interesse e desperta reações de amor e ódio em pessoas do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, de Porto Alegre e do Brasil inteiro.
Nenhum assunto — com a provável exceção da disputa entre o ministro Alexandre de Moraes e o empresário Elon Musk em torno da presença da plataforma X no Brasil — foi mais comentado nas últimas semanas do que o estilo, a ousadia, as provocações, a inconveniência e a intromissão de Marçal entre os favoritos de uma eleição em que, semanas atrás, ele era visto como um aventureiro. Com 37 anos — o que faz dele um representante da geração millenial —, o político se firma na disputa e sempre deixa uma dúvida na cabeça de quem procura entender a orientação que ele dá à sua campanha. A primeira hipótese é a de que ele não mede as consequências das palavras que diz. A segunda é a de que ele escolhe a dedo as palavras que mais ofendem e as utiliza com precisão, sempre com a intenção de fazer da reação do interlocutor um degrau para sua própria ascensão.
Assim como não se cansa de lançar farpas contra os oponentes, Marçal não se intimida diante de perguntas feitas com a intenção de embaraçá-lo. Se mantém em confronto permanente com os adversários com quem debate e com os jornalistas que o entrevistam. Trata a esquerda como um mal a ser combatido e não poupa a direita por se curvar diante do discurso dos adversários. Se comporta como se o mundo girasse em seu redor e não perde uma oportunidade de propagar que, pelo trabalho, se tornou um milionário.
Aliás, esse aspecto é muito interessante. A maioria dos políticos do Brasil leva uma vida que, pelo menos nas aparências, revela humildade e, em alguns casos, até pobreza. Guilherme Boulos, do PSOL, para citar apenas um exemplo, é filho de um casal de médicos e, em nome da militância, abandonou a vida confortável, de classe média alta, por uma casa simples no bairro de periferia do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo. Ali, leva uma vida parecida com a dos eleitores que corteja.
Marçal faz o contrário. Filho de pais pobres, não esconde que, por seu esforço, ascendeu na escala social e hoje circula pela cidade a bordo de seu próprio helicóptero. E diz que a riqueza está ao alcance de quem acreditar no próprio potencial e fizer o que ele fez: se preparar e aproveitar as oportunidades. Com um patrimônio de R$ 193 milhões declarado à Justiça Eleitoral, o candidato disputará a prefeitura de São Paulo pela legenda de um certo PRTB — Partido Renovador Trabalhista Brasileiro.
Trata-se de uma sigla para lá de nanica, perdida entre as 29 legendas que integram o congestionado e poluído universo partidário do Brasil. Não faz tanto tempo assim, a agremiação era motivo de chacota pela insistência com que seu ex-presidente, Levy Fidelix, defendia a proposta do Aerotrem — um sistema de transporte que, na cabeça dele, seria a solução de todos os dramas de mobilidade urbana.
AEROTREM E TELEFÉRICO — Vítima da Covid-19, Fidelix morreu em 2021. Na última eleição que disputou, para a prefeitura de São Paulo, em 2020, conseguiu 11.960 votos. Isso representa mísero 0,22% do total de 5.338.156 eleitores paulistanos que foram às urnas no primeiro turno. Caso o resultado do levantamento do instituto Datafolha divulgado na quinta-feira passada — que mostra Marçal com 22% da preferência do eleitor a um mês do pleito — fosse aplicado sobre aquele contingente de eleitores, o PRTB teria saído do primeiro turno com quase 1,2 milhão de votos.
Essa mesma pesquisa do Datafolha mostra o deputado Boulos com 23% das intenções de voto e o prefeito Ricardo Nunes, do MDB, com os mesmos 22% de Marçal. Ou seja: a rodada de pesquisas não mostrou Marçal isolado na liderança, como muitos chegaram a acreditar que acontecesse. Havia a expectativa de que ele mantivesse a escalada vertiginosa que, pelo mesmo Datafolha, o levou de 14% no início de agosto para 21% em meados do mês. Em compensação, ele também não registrou a queda que muitos torciam para que sofresse depois que a exposição de seu nome chamou atenção para erros que cometeu na juventude.
Da ficha de Marçal consta uma condenação a quatro anos e cinco meses de prisão por furto qualificado. Ele atribui o crime ao fato de, aos 17 anos, ter sido enganado por um antigo empregador. A pena nunca foi executada e acabou prescrevendo. O assunto tem sido fartamente explorado pelos adversários e pode ter contribuído para aumentar a taxa de rejeição de Marçal junto ao eleitorado. A taxa chegou a 34% — a mesma de Guilherme Boulos. Mas não foi suficiente para derrubá-lo das primeiras posições da preferência do eleitor.
No campo das propostas, as ideias de Marçal são mirabolantes. A mais estranha propõe, ao invés do aerotrem de Fidelix, a instalação de teleféricos para melhorar a mobilidade urbana. O candidato promete, ainda, triplicar o efetivo da Guarda Civil Metropolitana e construir na Zona Sul de São Paulo o edifício mais alto do mundo para abrigar a administração municipal. São ideias fora do convencional, que contribuem para chamar atenção para o candidato. Mas certamente não foram essas propostas, e sim a postura irreverente e desafiadora, que fizeram dele o assunto mais comentado da eleição.
OUTROS QUINHENTOS — Se vencerá a disputa ou não, são outros quinhentos. Os adversários de Marçal são políticos mais experientes e com estruturas muito mais bem montadas do que a dele. E que ainda dispõem de mais ou menos um mês até o primeiro turno para traçar uma estratégia capaz de anular os ataques desferidos por Marçal e reverter a corrente que os pegou de surpresa.
O prefeito Ricardo Nunes, do MDB, disputa a reeleição com o apoio de uma constelação de 12 partidos e conta com a simpatia do ex-presidente Jair Bolsonaro e do bem avaliado governador Tarcísio de Freitas. Guilherme Boulos tem o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de toda máquina de militância reunida em torno das bandeiras vermelhas dos partidos de esquerda.
Também não podem ser desprezados nesse cenário a deputada Tábata Amaral, que disputa a eleição pelo PSB do vice-presidente Geraldo Alckimin, e o apresentador José Luís Datena, que concorre pelo que restou do PSDB. A propósito, Tábata e Datena eram vistos no início da disputa como peças capazes de desequilibrar o jogo a favor de Boulos ou de Nunes no segundo turno — mas acabaram se tornando coadjuvantes na festa em que Marçal roubou a cena.
Chegar ao fim do processo e não ver sua candidatura sofrer qualquer tipo de impedimento será um fato novo na breve carreira de Marçal. Em 2020, ele se arriscou numa candidatura à presidência da República. Perdeu a legenda porque o partido em que se abrigou, um tal de PROS, preferiu se aliar a Lula antes da largada. Se lançou, então, nas eleições para deputado federal. Obteve 243.037 votos, mas não pôde tomar posse por erros na inscrição da chapa.
O AUTORITÁRIO POPULAR — A trajetória de Marçal não chega a ser inédita. Ela guarda semelhanças, por exemplo, com a de Javier Milei, que surgiu no cenário político como um tipo folclórico e terminou na presidência da Argentina. Milei, por sua vez, também não é um caso único. Nas eleições de 2018 no Brasil, Jair Bolsonaro também largou como azarão, correu por fora e terminou na dianteira. Há outros exemplos.
O mais citado vem de El Salvador, para onde Marçal viajou durante o feriado de 7 de setembro. Lá, Nayib Bukele se elegeu em 2019, com apenas 39 anos de idade, e acaba de ser reconduzido à presidência numa reeleição controversa, pois a Constituição local não prevê reeleição. Com autorização da Justiça, ele disputou, venceu e tomou posse amparado por taxas de popularidade elevadíssimas para um político com fama de linha dura.
Seu estilo desabrido de não medir palavras para desqualificar os adversários parece ter sido a maior inspiração de Marçal. Até o boné parecido com os que são usados pelos jogadores de baseball, que se tornou uma marca registrada da campanha do candidato à prefeitura de São Paulo, era um dos ícones do político salvadorenho. Eleito, Bukele cumpriu a promessa de campanha de dar um tratamento rigoroso ao tráfico de drogas e a todos os crimes associados a essa prática — o que fez de El Salvador o país mais seguro da América Latina.
Com sua fotografia estampada na capa da última edição da revista norte-americana Time, sob o título O Homem Forte, Bukele é apresentado como “o autoritário mais popular do mundo”. Em uma de suas declarações mais famosas, ele desafia o viés esquerdista que marca a política latino-americana ao dizer que não se importa com as críticas que recebe por ser um linha dura. “Tudo na vida tem um custo e o custo de ser chamado de autoritário, para mim, é muito pequeno”, diz.
O modelo adotado por Bukele e Milei, e agora reproduzido por Pablo Marçal em sua campanha, não depende apenas da intuição do candidato nem da habilidade em manter os adversários sempre espremidos contra a parede. Nada disso! Sua espinha dorsal consiste em dizer exatamente o que o eleitor médio deseja ouvir. Embora Marçal afirme que não gasta um centavo com pesquisas, ele com certeza rastreia as opiniões emitidas nas redes sociais, as processa e devolve ao eleitor que pretende alcançar exatamente aquilo que ele deseja ouvir.
“GADO” — É espantoso que ainda haja no universo da política quem se surpreenda com a eficiência desse arsenal e busque explicações convencionais para justificar a dificuldade dos políticos tradicionais diante da ascensão desse novo tipo de candidato. A tentação de quem perde espaço para esses adversários que entram no jogo sem o apoio dos grandes partidos ou dos movimentos sociais tradicionais é culpar a suposta ignorância do eleitor pela escolha supostamente malfeita. É muito fácil, por exemplo, chamar de “gado” os eleitores que apoiam Bolsonaro e, ao invés de tentar reconquistá-los, insistir na defesa das bandeiras que vêm afastando o povo da esquerda. Nunca é demais lembrar que moscas não são capturadas com vinagre, mas com mel.
E por falar em Bolsonaro, ninguém está afirmando aqui que uma estratégia de campanha eleitoral eficaz como a que ele utilizou em 2018 (e que foi muito parecida com a de Milei, Bukele e, agora, Marçal) é suficiente para garantir a um governante vida longa na política. A partir do momento em que ele assume o posto para o qual foi eleito, passa a ser cobrado pela sociedade das promessas feitas no calor da campanha.
Caso não consiga atender as expectativas que ele mesmo criou ao prometer fazer tudo de um jeito diferente do que fizeram os que vieram antes dele, o candidato vitorioso corre o risco de ver a corrente favorável que garantiu sua eleição se transformar numa força contrária e poderosa o suficiente para dificultar a continuidade de seu projeto. Isso vale para Bolsonaro, para Lula e para qualquer outro. Além disso, há fenômenos que não estão sob controle de nenhum candidato e que interferem nos resultados eleitorais, por mais eficiente que tenha sido a estratégia adotada na campanha.
Ninguém pode negar, para citar um exemplo ainda fresco na cabeça dos brasileiros, que a pandemia da Covid-19 levou a um estado de emergência que, admita-se ou não, pesou na avaliação negativa do governo Bolsonaro e contribuiu para a vitória de Lula em 2022. Também é impossível negar que os governos, quaisquer que sejam as intenções de seus ocupantes, por mais que sejam vítimas de circunstâncias não previstas, jamais deixam de ser os responsáveis por tudo o que acontece em seu mandato.
Veja, por exemplo, o que aconteceu em Israel na semana passada. Quase um ano atrás, como o mundo inteiro sabe, o país foi surpreendido pelo ataque covarde de terroristas que invadiram o território e saíram cometendo estupros, assassinatos, sequestros e outros atos escabrosos que escandalizaram o mundo. A reação foi — como era de se esperar — violenta e determinada. A ponto de, desta vez, Israel não ceder à pressão da comunidade internacional, como sempre fez em investidas anteriores, e atender os apelos pela interrupção dos ataques antes de aniquilar o comando do grupo Hamas.
A guerra poderia ter sido interrompida a qualquer momento. Bastaria, para isso, que os terroristas devolvessem a suas famílias os reféns arrancados à força de suas casas no dia 7 de outubro de 2023. Ou os restos mortais daqueles que não resistiram a quase um ano de maus tratos, novos estupros, fome e condições insalubres nas masmorras terroristas.
Enquanto muita gente, inclusive o governo brasileiro, insistem para que Israel esqueça tudo e interrompa as hostilidades sem que o Hamas se comprometa a devolver os inocentes que arrastou para seus calabouços, a guerra se estende e se agrava. E cobra um número de vidas que já ultrapassou os 40 mil do lado palestino e 1250 do lado israelense.
Na semana passada, o exército israelense localizou e resgatou em túneis na faixa de Gaza os cadáveres de seis jovens que se divertiam numa festa no dia em que foram arrastados para as tocas dos terroristas. Um deles, além da nacionalidade israelense, tinha a cidadania dos Estados Unidos. E, ao contrário do que acontece com outros países, entre eles o Brasil, o governo norte-americano não tem o hábito de deixar sem amparo os cidadãos que são vítimas de violência em outras partes do mundo.
Quem conhece a forma de operar das Forças de Defesa de Israel sabe que elas são formadas por cidadãos que sabem que eles mesmos podem ser vítimas do terror a qualquer momento. E que, ao descobrir os mortos antes que os terroristas tivessem pelo menos a decência de informar a localização dos corpos para que pudessem ser resgatados, se tomaram de indignação. E, assim, uma guerra que já parecia ter esgotado suas possibilidades e caminhava para o final, acabou ganhando mais força.
As consequências dessa guerra serão terríveis e a situação provavelmente jamais voltará a ser o que era antes do dia 7 de outubro — quando muita gente, inclusive apoiadores de Israel, defendia a instalação de um estado Palestino na região. Hoje, pelo rumo que os acontecimentos tomaram, essa hipótese é extremamente improvável. Para não dizer impossível a curto prazo. Assim é a política. Quando a situação chega a um ponto limite, a consequência é a guerra que, como disse o alemão Carl von Clausewitz, é a continuação da política por outros meios.
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